A seguir ao 25 de Abril as escolas onde andei eram a maravilha das maravilhas. Os professores não marcavam faltas, se calhar tinham receio que os alunos fossem à aula acusá-los de serem fascistas. A maioria não era, mas alguns eram. Claro que estes últimos tornaram-se nos maiores democratas e defensores da liberdade no dia 26 de Abril.
Passávamos imenso tempo no ginásio, onde víamos imensos filmes sobre o paraíso na Terra, ou seja sobre a União Soviética e a China.
Os alunos sentavam-se no chão do ginásio às centenas, super felizes, não pela boa nova anunciada, do paraíso na Terra, que estava a chegar a Portugal, mas porque não tinham aulas.
Adorávamos o professor de matemática, adorávamos mesmo. Nunca o deixámos dar uma aula, nem antes nem depois do 25 de Abril. Mas quando o filho nasceu juntámos dinheiro e comprámos-lhe um fio de ouro. Ele era jovem e ficou muito comovido. Pensou, erradamente, que nesse dia o deixávamos dar aula. A prenda era para o bebé, não era para ele. Mas, apesar de não o deixarmos dar as aulas, estudávamos para os testes e tirávamos boas notas. Eu gostava muito de matemática, era super fácil para mim. Difícil era Inglês e Português. A Português, em 1975, fiz um trabalho sobre Brecht e safei-me. Em 74 e 75 nas escolas onde andei, só eram leccionados autores marxistas. De qualquer modo aprendi imenso sobre a relação actor-personagem-público no trabalho sobre Brecht.
Parménides foi classificado pel0 professor de filosofia como fascista e foi apagado do programa. Era idealista pois pensava o ser como unidade e identidade abstrata. Platão não teve melhor sorte, para além de idealista era contra os direitos das mulheres e a favor da escravatura. Sócrates era o pior de todos, para além dos defeitos dos anteriores, era um fascista anarquista. De facto para o professsor os filósofos, com excepção de Marx e Engels, eram todos fascistas e não valia a pena serem estudados, a não ser para identificarmos os elementos fascistas das suas teorias. Era um trabalho fácil, pois todos os elementos eram fascistas. Até um mês atrás o professor nunca tinha ouvido falar nem de Marx nem de Engels, mas estes transformaram-se em estrelas no firmamento em poucos dias. Hegel era o mais perverso, tinha aberto os olhos a Marx e Engels mas via o mundo de pernas para o ar. Teve algum mérito, se abriu os olhos a Marx, disse eu ao professor que espumou e balbuciou qualquer coisa que já não me lembro.
Os filmes sobre o paraíso na Terra não me entusiasmaram muito. Era só gente a trabalhar no duro no campo. Nenhum de nós queria trabalhar estupidamente, cheios de pó ao sol e à chuva no campo. Nem no campo nem nas fábricas a soldar o dia todo ao sol. Para nós o paraíso era não fazer nada ou fazer coisas criativas. Nas duas férias grandes que se seguiram experimentei o paraíso na Terra nas vindimas, nas salinas a tirar sal e a carregar assim como a trabalhar nas obras. No ano que entrei para a faculdade as aulas só começaram em Janeiro e trabalhei até à passagem de ano nas obras ao calor, depois ao frio e à chuva, como ajudante de andaimes, depois de ferro, confragens, carpinteiro e pedreiro. Os quatro meses mais longos da minha vida.
Eu aproveitei a onda cultural e em 1975 consegui, no FAOJ – Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis – imenso material e abri um atelier de pintura no Liceu. Eu andava na Escola Comercial e Industrial e abri um atelier de pintura no Liceu. Como é que isso foi possível? Pois é, tudo era possível. Se um dia o director ou reitor, já não me lembro qual era o termo na altura, fosse acusado de fascista sempre podia dizer que me tinha autorizado a abrir um atelier de pintura e tudo. Era a favor da participação activa dos alunos, mesmo aos que não eram do Liceu. Tínhamos cavaletes, telas, pincéis, bisnagas de óleos gigantes, etc. etc. Eu pensei ir para artes, acabei por não ir, mas quase todos os colegas que frequentavam o atelier, foram para artes. A pintura acima foi de um desses alunos que seguiu artes plástivas, José Pinto. Imaginam-me com 17 anos com montes de material, a gerir um atelier de pintura, quando ninguém sabia nada de nada de pintura? O Liceu cedeu-me uma sala! Só para o atelier. Depois fui para a faculdade e o Atelier morreu. Mas acho que se mantém em todos os que o frequentaram.