Sonhos, anjos e demónios

SONHOS, ANJOS E DEMÓNIOS – Já contei muitas vezes no Facebook a história de uma escultura de 2,5 cm de altura que me foi oferecida por um desconhecido em Londres em 1988. Eu acabara de dar uma aula de Aikido, fiz saudação ao tatami, a seguir virei-me para sair. À minha frente estava um homem que eu não conhecia. Soube depois que era padre da igreja anglicana e um grande mestre de artes marciais. Deveria andar pelos 70 anos, estava acompanhado pela sua esposa, muito mais jovem. Era muito magro e usava óculos escuros. Apresentou-se referindo apenas o seu nome, dizendo que tinha uma coisa para mim. Desaperta o cinto das calças e retira um pequeno saco da bolso que estava preso ao cinto com um fio. Abre o saco cinzento escuro, de dentro sai uma bela escultura branca, estende-me e oferece-ma.

− Por que razão me está a oferecer a escultura?

− Foi-me oferecida quando eu era jovem por uma pessoa que me disse que deveria andar sempre com ela, pois um dia iria encontrar uma pessoa a quem a deveria entregar.

− Como sabe que sou eu a pessoa? – perguntei.

− Quando ma ofereceram, eu perguntei como saberia quem era a pessoa. A resposta foi que na altura eu saberia. Mal o vi, percebi que era para si.

− O que me está a dizer é estranho e sinto-me confuso.

− Não esteja. Aceite. Não lhe posso dar o saco. Quem me deu a escultura disse-me que o próprio deveria fazer o seu próprio saco.

De facto, o saco dele estava com ar já gasto, esgaçado e um pouco sebento. Imaginei-o durante, talvez 50 anos, todos os dias a enfiar o saco no seu cinto. Que estranha e absurda missão. Toda uma vida. Era a minha primeira vez em Londres, a primeira vez que dava uma aula de aikido noutro país. No dia anterior um aluno de Aikido havia-me levado a passear pela Inglaterra num Lotus Spirit Turbo. Estava a acontecer-me cada uma…

Levei algum tempo a aceitar a escultura, mas não encontrei argumentos para recusar. Ainda disse, várias vezes, que ele se poderia ter equivocado e que não era eu a pessoa. Dizia que não, que tinha a certeza absoluta.

Disse-me que deveria andar sempre com ela num saco para não a perder. No dia seguinte perdi-a. Foi uma angústia, procurei-a por todo o lado, acabei por encontrá-la num Jipe dum amigo que me havia dado boleia. Nunca fiz nenhum saco. Muitas vezes trazia-a no bolso pequeno das calças e foi ficando azul da ganga. Tive de a lavar para voltar à cor original. Perdi-a muitas vezes, voltei sempre a encontrá-la. Voltei a Londres no ano seguinte e encontrei-me com o padre.

− Onde está a escultura − foi a primeira coisa que perguntou.

− Tenho medo de a perder, não a trouxe – respondi.

− Tem de andar sempre com ela, não a vai perder – disse.

Nunca fiz nenhum saco, aproveitei um que já tinha e me pareceu adequado. Tem estado sempre aí desde então. Raramente ando com ela. Tenho mesmo medo de a perder.

A escultura é um netsuke. Os kimonos japoneses não têm bolsos, em vez disso usa-se uma pequena bolsa que fica presa no cinto do kimono por um pequeno objecto com dois furos, por onde passa o fio do saco. É esse objecto que é o netsuke. Descobri que o meu é uma reprodução de um famoso netsuke feito por um grande mestre. É uma raposa. Na mitologia japonesa existe uma raposa mágica Kitsune. Vive afastada do mundo dos homens, mas, de vez em quando, revela-se no nosso mundo disfarçada de mulher ou de monge. Revela-se escondendo-se. A minha está disfarçada de monge, com uma expressão super irónica com as mãos apoiadas num bastão. Aparece em histórias tradicionais e no Kojiki a mais antiga crónica do Japão. Já encontrei, em sites, referências ao original, em que se diz que pode antes ser um Tanuki, um guaxini. A escultura está muito estilizada e é difícil ter a certeza absoluta. Nas histórias tradicionais japonesas o Tanuki é sempre um animal travesso. Eu prefiro pensar que é uma raposa, pelo facto de uma das suas formas de aparição ser sobre a forma de monge.

Por que razão estou a contar esta história? Eu lembro-me muito claramente dos meus sonhos. Quando estive infectado pelo novo corona vírus, como tinha de tomar medicação para dormir, o meu sono era profundo e não me lembrava de nenhum sonho. A noite passada abandonei a medicação e tive um sono normal e lembrei-me dum sonho. Uma raposa pequenina passeava dentro do meu corpo e andava a reparar tudo o que havia para reparar.

− Vais também ter de dar a escultura um dia a alguém? – É a primeira questão que me colocam, sempre que conto a história.

− Quem ma ofereceu não me deu essa tarefa.

− Mas não está implícito quando ele te diz que deves andar sempre com ela?

− Não!