— Como posso aprender a construção de violinos? — perguntei ao mestre X que era construtor de guitarra portuguesa.
— Sobre violinos não o consigo ajudar, tem de procurar o Óscar que vive no Casal do Privilégio. O Óscar é um génio, dedica-se à construção de guitarras mas estudou a construção de violinos em Cremona — respondeu o mestre X.
— Onde fica o Casal do Privilégio?
— Não sei, nunca lá fui. Procure, de certeza que encontrará alguém que o ajude. Acho que fica entre Lisboa e Torres Vedras.
“Casal do Privilégio” eram as únicas palavras que me poderiam levar à oficina da Óscar. Em vez dos quarenta minutos levei quatro horas.
Se o leitor souber onde fica o Casal do Privilégio, agora já é tarde porque tudo isto aconteceu há trinta anos.
Já muito perto do limite que nos damos a nós mesmos para realizar uma tarefa, encontrei o Casal do Privilégio.
A oficina ficava nas traseiras de uma casa. O desnível do terreno permitia do lado da estrada principal dois pisos e do outro lado mais um piso.
Um indivíduo falava com dois homens, que escutavam sem responder, olhou para mim e perguntou o que eu queria.
— O mestre X enviou-me aqui para falar consigo — referi o nome do Oliveira, na esperança que isso pudesse ajudar na aproximação mas ele respondeu de forma teatral e irónica:
— O X. O grande construtor de guitarras!… — comecei mal.
Durante cerca de quinze minutos não me dirigiu a palavra e continuou a conversar com os outros homens.
Aproveitei para observar a oficina. Não tinha janelas, deveria ter sido em tempos uma garagem. O piso por debaixo dos nossos pés era estranhamente flexível, como se estivéssemos sobre uma camada de turfa com trinta centímetros. As aparas de madeira pareciam nunca ter sido varridas. Nalguns locais havia manchas de humidade mas a oficina não cheirava a mofo. Cheirava a madeiras e a resinas que inebriavam.
A lugar era escuro. As paredes estavam sujas, cheias de pó de madeira acumulado. Só então reparei em algo extraordinário. Na parede de fundo da oficina cinco guitarras portuguesas estavam penduradas a brilhar. Pareciam cinco pérolas num chiqueiro.
— O que é que o homem faz no mundo? Qual é o objectivo da vida? — pergunta-me o Óscar de forma inesperada. O que é que vou responder? Desta minha resposta dependerá o meu destino nos violinos, pensei.
— Há muitos objectivos, cada pessoa terá os seus — respondi, pensando ter dado a resposta certa.
— Não! Não há muitos, há só um! — responde.
— Qual é? — perguntei eu, virando a questão.
— Criar! Veja o meu filho a brincar com os pedaços de madeira. Ele cria. Ele junta os paus, separa, empilha. Ele procura criar. É o espírito das crianças, deveria ser o nosso. O sentido da vida é criar. Construir violinos não é imitar um padrão com centenas de anos. – Nas margens estreitas da liberdade há um espaço infinito para a criação, pareceu-me ser a sua mensagem.
Os meu pés já se haviam afundado nas aparas, tinha escurecido, as guitarras continuavam a brilhar, elas eram agora a única fonte de luz naquele lugar sujo. Como é que dum lugar destes poderiam surgir objectos de tamanha beleza, com um verniz perfeito? Lembrei-me do poema Zen, “o corpo é a árvore da iluminação / o espírito um espelho aí colocado / por isso é preciso poli-lo sem cessar / para que nenhum grão de pó lhe caia em cima”.
A oficina já não é naquele lugar. Agora está numa falésia sobre o mar. As paredes voltadas para o mar são em vidro. Quando lá vou tenho duas visões de grande beleza. No exterior, o mar, a praia, as rochas e os surfistas; no interior, sempre sujo de pó e aparas, as guitarras que brilham em todo o seu esplendor, com vernizes que fazem vir à luz, com poder, os veios das madeiras preciosas.