Abandono

João decidiu passar o fim de semana sem ele próprio. Sem si próprio não significa abandonar tudo e ir para o outro lado do mundo ajudar leprosos. Não foi um chamamento destes que ele sentiu, até porque para alguém se abandonar tem de estar presente, ser ele próprio mais do que alguma vez foi. Quem deixou a casa, um cargo no topo duma empresa, a família, os amigos, o país, para dedicar a vida a quem não tem nada, não é o mesmo, o chamamento tornou-o outro. Se não é o mesmo como se pode abandonar? A rigor ele não se abandonou, ele metamorfoseou-se. Nada que se pareça com uma metamorfose aconteceu ao João. De facto, nada lhe aconteceu, ele tomou uma decisão, fez um plano e seguiu-o. O que se passou nesses dois dias foi obra sua, ele esteve sempre ali, pois só estando ali poderia descarregar-se de si. Descarregar-se, não significa que deixou de ser responsável por si e pelos seus actos. Ele descarregou-se como alguém que carrega quinquilharia às costas e a dada altura decide pousá-la no chão e seguir mais leve. Assim ele fez. Deixou de meter o cinto das calças pela esquerda no sentido contrário aos ponteiros do relógio e meteu-o pela direita. Inverteu a sequência dos passos com que atava os atacadores dos sapatos. Fez a viagem pela estrada nacional e respeitou os limites de velocidade com um rigor absoluto. Leu um livro dum autor que não conhecia folheando aleatoriamente, lia uma página fechava o livro e voltava a abrir ao acaso. Passou a prestar mais atenção aos intervalos entre as coisas do que às próprias coisas. Em vez de olhar para o que se destacava sobre um fundo, olhava para os fundos sobre os quais as coisas se destacavam. Preferia as sombras dos objectos aos próprios objectos. Quando falava com alguém prestava mais atenção aos gestos da pessoa, ao seu sorriso, aos seus olhos, ao timbre da sua voz, do que ao que ela dizia. Olhava para os rostos e imaginava os músculos por debaixo da pele responsáveis pelas alterações na superfície. Procurava intencionalmente gravar determinadas sensações. Não no sentido de procurar não se esquecer delas, mas de as continuar a sentir. Abraçou a mulher na despedida, sentiu por longo tempo a sensação daquele contacto — dela colada a si, ao peito, aos braços, ao rosto. Gravou-a em baixo relevo, uma espécie de tatuagem a três dimensões, e levou-a como uma marca na pele.